domingo, 22 de março de 2009

Seu Didico: Paraense Velho Macho!

Série: PoPoPôs
Filme 01: Seu Didico: Paraense Velho Macho!
Autor: Chico Carneiro
Câmera: Sony PD-150, PAL, formato mini-DV, janela 16 X 9.
Filmagem: Março de 2006 (12 dias, diversos rios da Amazônia Paraense)
Montagem: Dezembro 2006 a Julho de 2007. Maputo, Moçambique.


Seu Didico: Paraense Velho Macho! Título deste meu documentário, primeiro de uma série de cinco filmes sobre os diferentes tipos de utilização dos barcos que navegam nos rios da Amazônia paraense. Com essa série pretendo mostrar a vida dos homens que trabalham nesses barcos, o registro da flora e da fauna, como vivem os ribeirinhos, a beleza da região, a degradação ambiental, e de como esse meio de transporte subsiste graças ao desprendimento desses homens que não dependem de apoios governamentais para criarem, com pujança, a base de sua subsistência econômica e do comércio fluvial paraense.

Os barcos que serão filmados transportam: madeira, peixe, pessoas, cerâmica e gado.
Opcionalmente farei um sexto filme focalizando os estaleiros da construção e/ou reparação de barcos. O relato que se segue foi escrito 2 meses depois de efetuada a viagem, com o auxílio de um “diário de bordo” e das 3200 fotos digitais feitas por mim e pelo meu irmão Amilcar nas 2 semanas de filmagens.

Neste documentário, como em “Os Promesseiros” (2001/2002) e “Casa do Gilson, Nossa Casa” (2002/2006) filmei sem um roteiro prévio e, como em “Os Promesseiros”, fazendo a mesma viagem duas vezes. Na primeira viagem documentei o máximo possível dos acontecimentos enquanto, em conversa com os tripulantes do barco e com os ribeirinhos, fui me familiarizando com o seu dia-a-dia e com as ocorrencias ao longo da viagem.

Na segunda, gravando cenas que eventualmente deixara de filmar na primeira, e incorporando novas situações à história que, no final, foi editada como se de uma única viagem se tratasse. Assim, no filme, a história da viagem do barco “Samaria” terá uma cronologia geográfica. Apesar de as sequencias não terem sido filmadas cronologicamente (ex.: a sequencia da morte da preguiça que foi filmada na segunda viagem e no filme aparece logo no início da viagem, no minuto seis), pra mim importa mostrar que aquilo realmente aconteceu e que não foi provocado para aparecer no filme, ou modificado para ficar “mais bonito” ou mais interessante.

Dramaticamente interfiro o mínimo possível nos acontecimentos evitando a repetição de uma situação, só o fazendo quando considero determinada ação importante para a compreensão da história e não consegui obte-la quando ela realmente aconteceu; se em uma determinada cena há um problema de falta de foco, ou a câmera tremeu, não a repito, a não ser que não tenha conseguido filmar o assunto que me interessa; esteticamente não estou preocupado com continuidade dramática ou visual “certinha”, e sim com a transmissão de emoção, em suas variadas matizes.

O ideal seria que a segunda viagem fôsse feita exclusivamente para a filmagem. Assim poderia parar o barco nos lugares que desejava filmar as cenas que não foram possíveis fazer na primeira viagem, como as panoramicas - a partir da margem - do barco passando, as entrevistas com a população ribeirinha, as atividades dessa mesma população, etc. Neste filme consegui que o percurso de ida da segunda viagem fôsse por minha conta, o que me permitiu enriquecer o filme com algumas das cenas acima citadas.

Neste primeiro filme registrei o transporte de madeira através da viagem do barco do “seu” Didico, o “Samaria”. A escolha do seu Didico foi meramente casual – mas foi uma escolha das mais felizes, acertadíssima, tamanha é a dimensão do personagem que ele interpreta, ou seja, ele mesmo: típico caboclo paraoara, sagaz, experiente, divertido, simples, um “velho boto dos rios”, e com um vigor que não transparece nos 74 anos de vida que ele carrega viajando, desde os 24, por rios da Amazônia paraense.

A escolha do Samaria

Em Setembro de 2004 eu fizera um contato com o então dono do barco Samaria, o sr. Clotário. Esse contato já tinha em vista fazer este documentário. Recolhi informações, preparei e submeti o projeto ao concurso “doc-tv” no Pará. O projeto não ganhou. Enviei-o a um produtor alemão (indicado pelo DOP Mário Masini), mas desse produtor não obtive resposta.

Decidi fazer o filme por conta própria, em minha ida de férias ao Brasil, em finais de fevereiro de 2006. A câmera e o microfone lapela utilizados, bem como o equipamento de edição, foram da minha empresa moçambicana PROMARTE; meu amigo Germano Milagre emprestou-me sua lente grande angular (que não foi utilizada); as demais despesas de produção (viagens, fitas para gravação, alimentação, transporte, combustível, equipamento adicional) e as de pós produção (música, fitas, transcrições) foram bancadas por mim.

Chegado ao Pará fui contatar o sr. Clotário para iniciar o filme mas ele já tinha vendido o barco, justamente para o sr. Didico. Este concordou em que viajassemos no barco para fazer o filme. Nesse dia que o contatamos ele estava partindo para mais uma viagem (cada viagem dura uma semana). Combinamos que viajaríamos na semana seguinte. Filmei planos dele fazendo compras no supermercado em Inhangapi e do barco partindo. Seu Didico regressou na terça, 7 de Março. A saída para iniciar o filme foi já no dia seguinte.

Dia 1, quarta feira, 8 de março de 2006.

Inhangapi é uma pequena cidade à beira de um bonito rio do mesmo nome, a 17 kms de Castanhal, cidade a 70 kms da capital paraense, na rodovia que liga Belém a Brasília. Em Inhangapi existe um porto de descarregar madeira, tijolos e telhas, que vêm de diferentes zonas do Pará, para abastecer o comércio de Castanhal e outras cidades do interior. Ali foi nosso porto/ponto de partida e de chegada. A tarde estava chuvosa, como o são todas as tardes paraenses nessa época do ano. Pedro, um de meus 8 irmãos, foi-nos deixar de carro: a mim, ao Amilcar (outro irmão, que trabalhou como meu assistente e fotógrafo) e ao seu Didico, que vive em Castanhal.

O barco estava pronto para partir mas a saída não tinha hora certa. Seu Didico estava à espera do dinheiro do frete da viagem anterior (que seria trazido pela pessoa que estava fretando o seu barco para todo o mes de março), e também do outro rapaz – Nia – que juntamente com o seu neto – Tadeu - completaram a tripulação do barco.

No dia anterior o Amilcar fizera as compras de comida e bebidas para a viagem. Entre essas, um objeto de muita importância para filmagens na região (e época do ano): um guarda-chuva impermeável! Também foi comprado um tubo de pvc para servir de “boom” para o microfone, mas que não chegou a ser utilizado.

Os momentos que antecederam a saída do barco foram de um vai e vem do seu Didico entre o barco, o porto, o “orelhão” (telefone público) e a casa de sua filha (a uns 700 mts de distancia), tudo isso regado a conversas (muitas vezes gritadas), e quase sempre em tom de galhofa, entre os homens que ali trabalham (descarregando dos barcos e carregando nos caminhões as madeiras, tijolos e telhas que chegam diuturnamente ao pequeno porto de Inhangapi) e que circulam no pequeno universo composto pelo porto, a ponte (que dá acesso à vila), os barcos, os caminhões e os 3 bares circundantes – tudo num raio de cerca de 100 metros.

A acomodação da nossa bagagem na minúscula cabine, um misto de-quarto-de dormir-cozinha-sala-de-jantar-acesso-ao-motor-do-barco foi o nosso batismo ao que seria o nosso “modus vivendis” pela próxima semana. Com a chuva que caía, o chão do barco no interior da cabine também estava todo molhado e parte da bagagem tinha que estar suspensa.

O acesso à cabine era bastante incômodo por causa do diminuto tamanho das 2 portas de ligação entre o convés e a cabine, e da diferença de níveis entre os dois ambientes. E como no interior da cabine o teto era baixo, impedindo que se ficasse completamente em pé, era preciso estar com a cabeça ligeiramente curvada, posição que depois de 2 ou 3 minutos já nos deixava com dor no pescoço. Ou seja: entrar na cabine (onde guardávamos o equipamento de filmagem e nossas roupas) significava ficar sempre em posição desconfortável, pelo o que logo aprendemos que o melhor era evitar o uso da cabine – uma “técnica” que só aprimoramos na segunda viagem.

A chuva parou mas o tempo continuou nublado. Partimos às 15:50 hs. Uma das coisas que eu mais temia – o excessivo barulho do motor que gerou a onomatopéia pelo o qual esses barcos são conhecidos, e o nome da série (po-po-pôs) – logo se revelou um barulho suportável, sem tornar-se desagradável, e era bom que assim tivesse sido porque o barulho só terminava quando o barco parava – e o motor era desligado. Esse barulho permanente seria – imaginava eu - o mais sério problema para o som do filme.

Em 1979, em São Paulo, fui assistente do Hugo Gama, diretor de som do filme “Pixote”, de Hector Babenco. Hugo (precocemente falecido) era considerado na época um dos melhores técnico de som direto do Brasil. Como um dos meus projetos era fazer um filme sobre os regatões na Amazônia (barcos que vendem de tudo um pouco – esse filme foi feito em 2005 por Mariza Leão) perguntei ao Hugo como se poderia tratar/gravar o som de um filme desse tipo já que o barulho dos motores praticamente inviabilizaria a clareza de qualquer tipo de diálogos que se quisesse fazer com o motor em funcionamento.

A resposta do Hugo: “deixa pra resolver esse problema quando fores fazer o filme.” Na época achei a resposta meio que uma desconversa, mas hoje vejo que ele tinha razão, pois os equipamentos evoluem, os métodos de trabalho idem, e o tratamento do som de um filme tem muito a ver com o modo COMO o filme será construído, com sua proposta estética.

Sabia que o ideal seria por microfones lapela (rádio) em cada um dos personagens, e ter um técnico de som, com um mixer, controlando o som de cada um deles. Mas quêde grana para tal? Eu só dispunha de um microfone lapela tradicional e do microfone direcional da própria câmera, e foi com esse equipamento que assumi a aventura de fazer o som do filme, eu mesmo o controlando.

Um amigo do seu Didico pediu carona, iria saltar num determinado ponto ao longo do rio Inhangapi, cujo percurso (antes de atingirmos o caudaloso rio Guamá) estava previsto pra ser feito em 3 horas. Então ele e o meu irmão tiveram que ficar “escondidos” na cabine nos momentos em que eu precisava filmar da proa do barco os planos mais gerais. Esse carona também foi o responsável por um diálogo no filme que cai ali de pára-quedas, logo após a sequência da morte da preguiça, quando o barco pára para pegarem açaí. Ouve-se uma voz que diz “o Didico tem 300 anos” ao que o seu Didico, enquanto sobe o trapiche, responde: “não”. Na edição foi impossível retirar essa fala, que acaba parecendo ser o comentário de um dos outros 2 tripulantes...

A primeira parada, ainda no rio Inhangapi, foi na casa de um cunhado do seu Didico, para colher açaí. Enquanto eu filmava o seu Didico, o Tadeu e o Nia foram apanhar o açaí, por um terreno bastante enlameado, pelo o que não deu pra ir filmá-los. E também porque nesse início de viagem os personagens ainda não tinham entendido o processo do meu trabalho, onde sempre que possível eu teria de ser previamente informado da ação que eles iriam fazer, a fim de que as pudesse registrar – o que na maioria das vezes eles simplesmente ignoravam, por não fazer parte do seu cotidiano.

Câmera na mão

O uso da câmera na mão foi a estética que utilizei para o filme. Não só pela agilidade proporcionada para registrar o incessante vai e vem da tripulação, mas sobretudo porque os acontecimentos eram sempre imprevisíveis, e uma câmera no tripé jamais conseguiria ter a rapidez pra registrá-los. Essa estética ágil, leve, solta e a reboque dos acontecimentos (poucas vezes uma ação foi repetida) complementava, por outro lado, uma movimentação lenta da câmera, permitindo que os acontecimentos da imensa região “adentrassem” o quadro, fluindo ao ritmo do longo tempo e espaço amazônicos.
Além da câmera na mão, também a utilizava apoiada numa almofada. O tripé foi utilizado nas entrevistas do seu Didico (quando ele pilota o barco e quando ele canta uma canção fingindo tocar violão), e na entrevista do Tadeu.

A rapidez com que as modernas câmeras digitais entram em modo de operação (cerca de 5 segs. depois de ligadas) é uma mais valia fantástica para filmes documentários. As que possuem a janela lateral com visor de cristal líquido – como é o caso da PD-150 que utilizei - são mais práticas ainda! Aliás esse novo formato de câmeras com janelas-visores laterais estão contribuindo para a criação de uma nova linguagem e estética nos filmes atuais, sobretudo os documentários, justamente por permitirem fazer cenas que antes seriam praticamente impossíveis de filmar ou que exigiriam sofisticadíssimos equipamentos de movimentação e manipulação das câmeras, só possíveis em produções com alto orçamento. É a estética do naturalismo e da diversificação dos ângulos de filmagem.

Numa viagem dessa duração não se fica com a câmera o tempo todo na mão, até porque a paisagem (água, floresta, açaizais, aqui e ali uma casa e seus habitantes, um barco ou canoa ancorados ou passando...) e as ações executadas no barco tornam-se repetitivas. Então a câmera ficava guardada em sua mala impermeável que, por sua vez, ficava ou por cima da cabine de pilotagem, sob um toldo, ou no chão, sempre próxima de mim; apesar da proximidade eu perdia algum tempo para ter a câmera operacional, daí porque eu pedia que eles me avisassem antecipadamente o que iria acontecer, para não perder o registro. Mas eles quase nunca lembravam de avisar suas atividades cotidianas – e isso só era um “problema” quando eu não estava com a câmera na mão.

O açaí colhido foi preparado na proa, lugar que servia de cozinha, banheiro e, como se verá mais adiante, sanitário. Uma máquina manual de bater o açai fazia parte dos objetos do barco. A água quente expelida pelo motor foi utilizada para amolecer o açaí, mas ele foi batido com água potável que trouxemos para bordo. Depois de batido o açaí foi posto para gelar. Só seria tomado no jantar.

Numa casa mais à frente o “carona” desceu e na boca da noite adentramos o caudaloso rio Guamá. O tempo nublado promoveu um fim do dia de uma tonalidade incrivelmente azulada. Chegamos a Bujarú cerca das 20 horas. Jantamos: carne guisada e assada, feijão, arroz, farinha... com açaí! Seu Didico só tomava o açaí com farinha, sem açucar e acompanhado de água. Fomos carregar uma das baterias da câmera, utilizando a tomada do quarto do vigia do trapiche municipal. Ligações de celulares não foram possível porque tanto as operadora Oi, como a Tim, não possuem cobertura naquela cidade, prova do descaso social dessas operadoras. Depois da bateria carregada seu Didico afastou o barco do trapiche para um local mais sossegado para podermos dormir. Nessa noite dormimos todos no interior da cabine. Antes de dormir, a conversa entre o seu Didico e seus ajudantes foi sobre visagens e a “Matinta Perêra”, que eles não só acreditam existir – e juram já ter visto! Conversa devidamente registrada para o filme. A noite foi tranquila, embora aqui e ali o azucrinante zumbido dos carapanãs teimasse em pertubar o sono.


Dia 2, quinta feira, 9 de março de 2006.

Acordamos cedo, 5:30. Seu Didico botou seus tripulantes para ligarem o motor do barco (Tadeu), e pilotarem-no (Nia), enquanto ele ia pra sua rotina fisiológica: cagar, acocorado na proa do barco já em movimento, uma tarefa que exige, digamos, uma certa afinidade com essa opção, imposta pela realidade dos barcos que não possuem banheiro.

A outra opção à posição acima citada (praticada sempre ao amanhecer, quando ainda está escuro) é fazer DENTRO do rio, enquanto toma-se banho. Também neste caso é necessário alguma perícia para executar a tarefa. Ambas as opções não são para neófitos, como era o nosso caso.

O dia amanheceu bonito. O café novo, fresquinho, foi tomado com bolachas. Os dois ajudantes foram refazer o suporte do toldo, fazendo-o mais firme para que se pudesse armar redes e dormir fora da cabine. Por volta das 9:00 hs foi servida uma merenda. Cruzamos a primeira ponte da alça viária, a que passa sobre o rio Guamá.

Às 10:30, já em Belém, aportamos num posto de gasolina flutuante para o reabastecimento. Esses postos possuem loja de conveniência e, o melhor de tudo, sanitário limpo – logo aproveitado pelo meu irmão que, como eu, não teve a capacidade de adaptar-se às opções para satisfazer as necessidades fisiológicas oferecidas pelo “Samaria”.

Caiu uma chuva rápida. Foi feita a limpeza do porão. Num ponto em que o rio bifurcava (seguindo em frente entrava-se no rio Acará; à direita, no rio Moju) avistamos a ponte do Acará (uma das 4 que formam o corredor rodoviário que ficou conhecido como “alça viária” e que interliga várias cidades ribeirinhas, cujo acesso antes só era possível pelos rios, ou de avião) e embicamos para a direita. Pouco depois passamos sob a primeira ponte do Moju, ainda bastante longe da cidade de Moju.

O dia terminou com um belíssimo por de sol. Filmei o seu Didico jantando, acompanhado do onipresente açaí. Passamos na cidade de Moju já noite feita. Navegamos parte da noite, passando o “canal dos escravos” (trecho largo, com cerca de 1 km de comprimento que, ao que se conta, foi aberto por escravos em finais do século 19. É uma canal impressionante pela sua linha reta, sobretudo se se levar em consideração que sua abertura foi feita por mãos humanas), entramos no rio Igarapé Miri, passamos a cidade de Igarapé-Miri e fomos dormir no Riozinho, com o barco “ancorado” nos ramos das árvores da margem.

Uma noite estreladíssima, com a calma e o silêncio entrecortados, aqui e ali, pelo som dos motores de outros barcos.



Dia 3, sexta feira, 10 de março de 2006.

Saímos do Riozinho às 06:00, com a maré ainda baixa. Dia bonito, café fresco com bolacha para acordar. O trecho percorrido no Riozinho é pequeno. Logo entramos no rio Meruú, rio comprido, largo e com um grande tráfego de embarcações. Passamos pelo rio Anapuzinho e entramos, à direita, no rio Caji. Quando entravamos nesse rio passou por nós uma rabêta (canoa comprida e veloz para transporte de passageiros ou comércio) vendendo o saborosíssimo peixe “Mapará”, comum nos rios da região. Essa rabêta vinha com um peixe pendurado numa vara, como amostra do produto que estava vendendo.

Na rotina do barco as refeições eram preparadas por qualquer um dos 3 tripulantes, assim como a sua condução, sendo que o seu Didico é quem mais pilotava. E por hábito ele estava permanentemente dando esporros nos dois ajudantes, dizendo o que eles tinham de fazer, chamando a atenção quando faziam alguma coisa errada, ou mesmo fazendo qualquer tarefa que precisasse ser feita (muitas vezes largando a cabine de pilotagem quando percebia que seus ajudantes não tinham feito a tarefa, ou não a fizeram corretamente), o que invariavelmente servia de pretexto para sua diversão predileta: esculhambar com o Tadeu, o seu neto. Nia, homem de poucas palavras, só “comia quieto”, ou melhor: bebia! (a cada vez que ele era solicitado pra ir buscar uma cerveja gelada na cabine, ele pegava uma pra ele. No início, respeitosamente, perguntava se podia tirar uma pra ele. Mais tarde, quando a necessária camaradagem a bordo se agudizou, já nem perguntava...)

O Tadeu por sua vez não ficava calado e a troca de palavrões entre avô e neto era uma constante, na verdade era a forma carinhosa deles se tratarem (Tadeu, num surpreendente senso de humor para a sua idade, dizia: “ele me esculhamba porque me ama!”). Quando tinha de elogiar o seu neto ou o empregado o seu Didico utilizava a expressão “cabra velho macho!”, dita em alto e bom som, a partir da cabine de comando. Por exemplo, o Nia fazia um café novo e o servia na velha garrafa térmica que viajava permanentemente ao lado do seu Didico. Isso bastava para que ele gritasse o elogio: “aí, Nia, cabra velho macho!”. Surgiu daí a idéia para o título do filme.

Com uma larga experiência de navegação, seu Didico tinha a tranquilidade de quem conhece o seu metier, e sabe que a atenção permanente é a garantia de uma viagem segura. Nenhum detalhe relacionado com a segurança escapava ao seu permanente e atento olhar.

A manhã ainda ia no seu início quando o barco diminuiu a marcha e começamos a encostar em uma pequena casa, que logo vimos ser uma “loja”, vendendo produtos de primeira necessidade. Barco encostado, seu Didico rapidamente saltou, o que me obrigou a pedir que ele esperasse enquanto eu preparava a câmera, descia do barco na frente e ia filmar ele comprando o produto esquecido: sal.

O barco seguiu viagem e logo o seu Didico descobriu que o alternador do motor estava com problemas e não estava gerando energia para a bateria. O Tadeu começou a desmontar o alternador para consertá-lo. Seu Didico foi buscar uma panela (das utilizadas para cozinhar), pôs óleo de motor nela e colocou-a ao lado do Tadeu para que ele depositasse as peças do alternador na panela para lavá-las. Questionamos o fato dele utilizar a panela de cozinhar para esse tipo de trabalho e ele não deu a menor bola pra nossa reclamação, apenas nos informou que depois eles deixariam a panela de molho uma meia hora no sabão “omo”, tirando todo o vestígio do óleo: “a panela fica zerada!”.

Neste ponto é bom que se diga que apesar de saborosíssimas, as carnes e os peixes fritos vinham “nadando” em óleo; e que tirante uns jirimuns no feijão não comemos nenhuma verdura ao longo das duas viagens. Ainda tentei convencer seu Didico da necessidade de diminuir o óleo na fritura, mas seus 50 anos de andanças nos rios (e - por que não dizer? - nas andanças por comidas cheias de óleo) não admitiam esse tipo de “interferência” no seu modo de vida.

O Rio Caji logo se revelou um rio bastante limpo e bonito (à medida que se afastava do seu encontro com o rio Meruú) e, como nos demais, com uma paisagem típica, bonita mas repetitiva: floresta, casa, açaízais (em quantidade maior do que em outros rios), um ou outro barco a motor e a população em pequenas canoas.

Paramos em uma serraria, onde o seu Didico (rapidamente, sem me esperar, como sempre) saltou para deixar um dinheiro para o dono (seu Narciso), como pagamento de uma madeira que levara na viagem anterior. A esposa deste ao me ver filmando quis saber quanto eu cobraria para filmar os 15 anos de sua filha, que seria no mes de Junho...

Por volta das 11 horas chegamos na serraria do sr. Zé Melquides (que o seu Didico só chamava de “Merquides”), ponto final de nossa viagem. A madeira que seria transportada estava toda arrumada à beira do rio. Depois de contada e de aparada suas pontas, o Tadeu e o Nia começaram a carregá-la para o barco. Para tal é necessário posicionar corretamente a prancha de madeira que faz a ligação do barco com a terra, ajustando-a ao fluxo e refluxo do rio, influenciado pela maré.

Enquanto a madeira ia sendo carregada os trabalhadores rolavam troncos do rio para a serraria e, nesta, procediam ao corte das toras, transformando-as em tábuas. Tudo manualmente. O enorme e barulhento motor servia apenas para movimentar a serra. Começou a chover mas o carregamento do barco não parou. Filmei o carregamento também sob chuva e fiz uma entrevista com o sr. Zé Melquides, que tinha um falar tipicamente caboclo, muito legal.
O terreno em volta da serraria era cheio de árvores frutíferas (ganhamos cupu-açús). Mais ao fundo do terreno ficava a casa da família. Aproveitamos o fato de ter um gerador e colocamos as baterias da câmera para carregar, dando óleo diesel como “pagamento” pelo funcionamnto extra do gerador.

No final do dia tomamos banho no rio. Tadeu dando saltos mortais para a água. Seu Didico decidiu não carregar toda a madeira porque de acordo com seus planos no dia seguinte haveria muito tempo para o fazer. Além disso caso outra parte da madeira (que seria carregada em outra serraria) só estivesse pronta na segunda, talvez passássemos o fim de semana ali, à espera.

Mas esses planos só soubemos mais tarde, na hora do jantar. Então propusemos pagar o valor do frete da tal madeira da outra serraria de modo a que iniciássemos a viagem de volta já no dia seguinte. “Por que não disseram isso antes?”, perguntou o seu Didico, emendando: “se soubesse eu teria mandado carregar a madeira daqui todinha...”, demonstrando dessa forma como o seu “tempo” é regido e que a vida no barco representa pra ele parte indissolúvel de sua realidade. Sua esposa estava longe, mas pra ele ficar um ou dois dias parados “à espera” não constitiuía motivo de pressa. Voltar, partir, ficar, esperar: verbos de contingência, a realidade imposta pelo tempo amazônico.

Jantamos (o trivial, sempre regado com açaí) e o seu Didico foi ver o último capítulo da novela “Almas Gêmeas”, sucesso também ali nos confins do Pará. A sala da casa ficou cheia com os vizinhos vendo a tv, que nesse dia (para alegria dos filhos do dono da casa) funcionara a tarde toda por causa do carregamento das baterias. Esse capítulo foi provavelmente um dos piores finais de novela já produzidos pela Globo. E é desalentador saber que é esse tipo de dramaturgia (pra não falar da imposição do modus vivendis carioca ou paulista imposto pela “inovadora” rede) que vai forjando a identidade brasileira.

Seu Didico colocou uma tarrafa no rio. A noite estava chuvosa, fria e tranquila. O Tadeu decidiu ir caçar, de canoa. Como o filho do dono da serraria - que havia combinado de ir junto - não apareceu, ele pediu a ajuda do “Nia” pra remar o pequeno casco, mas esse revelou-se um inapto remador. O Tadeu resolveu ir sozinho. Adormecemos, sob o som de morcegos que aninhavam-se no enorme Buritizeiro ao qual nosso barco estava amarrado.


Dia 4, sábado, 11 de março de 2006.

Seu Didico foi o primeiro a acordar. Logo ele estava num casquinho checando a tarrafa colocada na noite anterior. Foram apanhados 5 pequenos peixes, comidos fritos na hora da “merenda”. O café foi tomado sob os relatos da aventura da noite anterior do Tadeu – que não caçou nada – e das críticas do seu Didico ao seu comportamento, de ir caçar em terras alheias sozinho, correndo o risco de, por não conhecer a região, ferir algum morador local. Seu Zé Melquides – o dono da serraria – subiu ao barco e, como é comum a todas as pessoas que aparecem, foi-lhe servido café. A conversa rolou fiada com o seu Didico soltando uma de suas pérolas: de que nunca batera em ninguém e pedia pra «quarquer um filha da puta desses» lhe dar um tapa só pra ver como é que era levar um tapa na cara. Só que ao bater o tal cara teria que sair correndo porque senão a forra viria no ato! O carregamento da madeira foi reiniciado.

A madeira carregada ali perfazia 9 toneladas da capacidade do barco. O “Samaria” tem uma capacidade de carga de 18 toneladas. Esse total só é conseguido acondicionando madeira também fora do porão, no convés, pratica ilegal mas comum aos barcos que transportam madeira na região. Quando o barco está completamente carregado o seu convés atinge a linha da água, o que traz uma grande vantagem: a água do rio para o banho e outras utilizações é recolhida sem nenhum esforço.

Seu Zé Melquides ofereceu-nos mingau de açaí com farinha. É um alimento servido salgado, uma estratégia alimentar: obriga que a pessoa beba muita água ao longo do dia e, assim, “engane” a fome. Cerca das 9:15 despedimo-nos e o barco iniciou seu caminho de volta. Um filho do seu Zé Melquides pegou carona até a próxima parada. Hora da merenda: o peixe pescado na noite anterior, frito, com açaí e farofa! Orgasmo culinário!

O cupu-açú oferecido pelo seu Zé Melquides foi transformado em “vinho de cupú”, outro néctar dos deuses amazônicos (chama-se “vinho” porque os gomos da fruta são cortados e amassados com água, ficando muitos pedaços desses gomos no suco obtido, podendo-se mastigá-los, ao contrário do “refresco” que é liquidificado... ali no barco não existia a segunda opção. Beber o vinho de cupú foi como voltar a infância, porque era a maneira como a minha mãe preparava o cupu-açú pra nós, quando o liquidificador era um objeto ainda inexistente em nossa realidade.)

Cerca das 11:30 chegamos na segunda serraria, do seu Ari. A madeira a ser embarcada estava empilhada, mas não havia absolutamente ninguém no local (era sábado e nesse dia não se trabalha em algumas serrarias; noutras, só até ao meio dia). Recomeçou a operação de carregamento com o Tadeu e o Nia no transporte e o seu Didico na arrumação.

Eu e meu irmão aproveitamos a demora do carregamento para uma incursão à um sanitário “5 estrelas” da casa ao lado. Nesse sanitário, uma curiosidade: no seu tampo de madeira haviam tres buracos. Dois grandes e com o mesmo diametro nas extremidades e, entre eles, um menor. Seriam eles utilizado ao mesmo tempo por dois adultos e uma criança!? Ou então só o pai (ou mãe) e mais uma criança? Ou será que os buracos para adultos seriam um para homens e o outro para as mulheres? Não conseguimos obter resposta a essa dúvida!

Enquanto o barco era carregado, fotografávamos. A senhora dona da casa perguntou se poderíamos tirar fotos 3X4 do seu filho que estava precisando de fotos para a escola e outros documentos. Fizemos a foto e a entregamos na viagem seguinte.

A madeira a ser carregada ali não era muita. Seguimos viagem até a casa do sr. Ari, onde o seu Didico conseguiu emprestado um novo alternador. Na ampla sala da casa de madeira (uma característica das casas da região), com redes permanentemente armadas, o movimento de gente era intenso. Ali também estava um amigo do seu Ari que tinha sido ferido num acidente quando o barco em que viajava fora abalroado por outro, ele caíra na água e fora atingido pela hélice de um dos barcos. Apesar do corte profundo em sua perna felizmente não ficara aleijado.

Apesar de poucas estatísticas os acidentes são mais comuns do que se imagina. As causas mais frequentes são as falhas humanas. Os barcos – sobretudo os menores - em geral não respeitam as regras de cada um andar em sua mão de direção e não possuem todos os itens de segurança exigidos pela Capitania dos Portos do Pará. Nós mesmos, no dia anterior, chocáramos com um barco menor que vinha na contra mão e não conseguiu desviar a tempo de bater no nosso. E era de dia. Felizmente que, além do susto, não houve danos pras duas embarcações.

A casa do seu Ari fica a 150 metros de um trapiche que dá acesso a uma vila conhecida como Igarapezinho. O acesso a essa vila é feita por uma longa (cerca de 800 metros) ponte de madeira sobre palafitas, ou de canoa (casco) ou rabêta, pelo pequeno igarapé que margeia a ponte.

Nessa vila realiza-se em Setembro o Círio em homenagem à padroeira local: Nossa Senhora de Nazaré. Almoçamos e fomos conhecer a vila. A longa ponte termina num conjunto de bares, num dos quais tocava uma música altíssima, com algumas mulheres e homens bebendo cerveja.

No final da ponte tem a igrejinha local e aos lados dela enfileiram-se um conjunto de casas dos moradores – algumas em avançado estado de degradação -, alguns bares e a seguir o campo de futebol, a nova escola, e mais casas esparsas. Depois de vermos rapidamente o local e fazer algumas filmagens, retornamos ao barco.

Começou a chover. O Nia subiu num açaizeiro para colher açaí, e era visível o seu esforço para subir a palmeira. O garoto Samuel (filho adotivo do sr. Ari), então mostrou suas habilidades subindo num açaizeiro, apanhando o cacho de açaí e descendo numa rapidez impressionantes.

Cerca das 14:30 horas partimos e às 16:00 fizemos nova parada, ainda no Rio Caji, para completar o carregamento da madeira – desta vez na serraria do seu Narciso (a primeira que paráramos na vinda).
Enquanto a madeira era carregada as duas filhas do dono da serraria foram tomar banho no rio, de vestido. É comum os ribeirinhos, sobretudo as mulheres, tomarem banho com a roupa de uso diário; no caso, vestidos.

Com a capacidade de carga do barco completa, zarpamos. Antes de escurecer paramos em uma casa para, a partir do trapiche, fazer planos do barco passando. Era uma família com muita gente, muitas crianças, e a nossa presença causou um certo alvoroço na quietude do fim daquele dia. Pra que eu pudesse filmar sem que a movimentação dessas pessoas balançasse o trapiche o meu irmão foi fotografá-los para acalmá-los. Depois disso navegamos sem parar. A noite chegou e adensou-se. Filmei planos das casas iluminadas, a maioria delas no rio Meruú.

Paramos pra abastecer em Igarapé Miri e saímos de lá por volta das 22:30. Antes de sairmos, uma pequena parada no posto de fiscalização aonde o seu Didico “molhou” a mão do fiscal que deveria cobrar, para os cofres do Estado, a taxa de transporte da madeira. O valor pago foi 20 Reais. Infelizmente era noite, a casa de fiscalização estava às escuras, o barco encostou na casa, o fiscal apareceu vindo das sombras, pegou o dinheiro e voltou pro escuro. Impossível filmar.


Dia 5, domingo, 12 de março de 2006.

Para a proveitar a maré, seu Didico e seu neto revezaram-se no descanso e na pilotagem, de modo que o barco não parou. A noite estava muito bonita, estrelada e enluarada, o que permitia uma navegação tranquila. Eu acordei de madrugada e sob um frio (não muito intenso, mas incomodador) fiz companhia na conversa ao seu Didico, enquanto os demais dormiam. Amanhecemos no “estirão do Mamão”, ainda no rio Moju.

O dia clareava lentamente e muito bonito. Apareceu um boto mas só por alguns segundos. Fiz uma entrevista com o seu Didico (enquanto ele pilotava), utilizando o microfone lapela e o tripé.

Aproximamo-nos de Belém. Encostamos em um trapiche de uma casa que estava cheia de cães ferozes. Depois que seu dono apareceu e trancou os cães, deu-nos permissão e pudemos saltar para fazer o plano do barco passando, com a cidade grande ao fundo (é o plano que encerra o filme).

Paramos num bar pra abastecermo-nos de cerveja e gelo. Pegamos um atalho pelo Furo de São Benedito não só para encurtar a viagem mas também fugir de uma eventual fiscalização na zona portuária de Belém. Esse Furo de São Benedito também é conhecido como Furo Itacoã.

Almoçamos e seu Didico foi dormir. Paramos na casa do Periquito (conhecido do meu irmão e que sempre lhe apoiou nas suas viagens com os promesseiros) e ali ficamos toda a tarde esperando a mudança da maré. Pra passar o tempo, fotografias e jogo de bingo no trapiche. Aproveitando o tempo de espera fiz mais um plano do barco passando no meio do rio, carregado, visto a partir da margem.

Partimos às 18:00 horas. Fiz um plano do seu Didico na proa do barco, iluminado pelo refletor, com a lua ao fundo. Navegamos sem parar. Às 23:30 chegamos na boca do Inhangapi e 3 horas depois chegávamos no porto de onde partíramos. Dormimos no barco.


Dia 6, segunda, 13 de março de 2006.

Manhã cedo, com névoa sobre o rio, filmei a chegada do barco ao porto de Inhangapi. E em seguida o descarregamento da madeira. Meu irmão Pedro foi buscar-nos e despedimo-nos combinando em refazer a viagem dentro de uma semana.

(Nessa viagem o seu Didico trouxe Ripas, Ripão e Pernamancas, das madeiras Cupiúba e Anani.)

2ª VIAGEM

Dia 7, quarta, 22 de março de 2006.

Uma semana depois estávamos prontos para viajar novamente.
Encontramos o seu Didico no porto de Inhangapi. Ele acabara de chegar de viagem e já desembarcava a madeira. Fiz uma nova entrevista com ele, fiz mais planos do descarregar da madeira, filmei seu Didico cozinhando e, ainda, especialmente para o filme, do barco saindo e mais alguns planos do seu Didico pilotando, e do barco passando no rio, a partir da margem.

Porém nesse dia não poderíamos viajar. Se tudo corresse bem viajaríamos no dia seguinte.


Dia 8, quinta, 23 de março de 2006.

Em Castanhal entrevistei a esposa do seu Didico (que ao contrário dele, é pouco falante) e planos dele chegando e entrando em sua casa. Curiosidade: em casa, nos poucos dias que passa ali (no máximo um ou dois, entre os intervalos de cada viagem) é o seu Didico quem cozinha. Às 16:00 fomos para Inhangapi e ficamos à espera do dono do frete, que deveria trazer o dinheiro para podermos seguir viagem, mas ele não apareceu. Viagem adiada para o dia seguinte.


Dia 9, sexta, 24 de março de 2006.

O dia amanheceu com chuva. Antes de seguirmos para Inhangapi passamos na feira do agricultor em Castanhal para comprarmos pamonhas. Em Inhangapi a chuva continuava e foi sob chuva que partimos, às 8:30. Desta vez a viagem foi parcialmente fretada pra mim, pro filme.

Cruzamos com 2 outros barcos, um carregado com madeira; o outro com telhas.
Depois de 1 hora de viagem o Tadeu avistou, na copa das árvores, uma preguiça. Excitado pela perspectiva de ter um almoço diferente, agilmente o seu Didico manobrou o barco no estreito rio e retornou para procurar pelo animal. Perguntado o porquê queria matar o animal sua resposta foi de pronto:
- Ora, pra fazer um sarrabulho, comer!

Não conseguíamos visualizar o animal que o Tadeu teimava em dizer que tinha visto. Então eles encontraram-na. A chuva intensificou-se. O Tadeu foi buscar a cartucheira, pôs um casaco pra proteger-se da chuva, subiu no teto da cabine do barco e disparou 3 tiros. A cena era cinematográfica: a cada tiro ele retirava, com os dentes, o cartucho usado, enquanto colocava novo cartucho na arma. Aparentemente não acertara no animal. Então o seu Didico embicou o barco na margem e o Tadeu, depois de tirar a roupa e ficar só de cueca, subiu na árvore, o que fez com relativa facilidade, apesar da chuva intensa.

Com uma mão segurando um guarda-chuva e a outra filmando, fui documentando tudo, mas não podia virar a câmera muito para cima porque senão a câmera molhava. Além disso, com a possibilidade de a preguiça despencar sobre o barco, era preciso proteger a cabeça, já que o plástico do toldo poderia romper caso o animal caísse sobre ele.

O Tadeu ficou balançando o galho aonde estava a preguiça que, depois de algum tempo, despreendeu-se e caiu na água. Seu Didico, com uma agilidade impressionante para seus 74 anos, pendurou-se ao lado do barco e com um dos pés puxou-a para si, agarrando-a por trás do pescoço e jogando-a no convés. O animal lentamentava-se. Era um macho, reconhecível pela mancha alaranjada nas costas. Seu Didico botou o barco em movimento novamente e ordenou ao Nia que descesse ao porão, pegasse alguns ouriços de Castanha-do-Pará e começasse a descascá-las, porque queria comer preguiça com leite da castanha!

A preguiça tinha sido atingida pelos chumbos da caçadeira, parte deles alojando-se em suas costas. O ritual de matá-la, um anti-espetáculo, revestiu-se de uma aparente crueldade. Primeiro ela teve seu pescoço cortado, como às galinhas. Em seguida foi pendurada pelo pescoço, para ser-lhe retirado o couro. Apesar da degola ela ainda tinha espasmos que a fazia mexer-se, dando a impressão de ainda estar viva. Suas patas agarraram-se à corda, como se quisesse impedir o “enforcamento” e foi assim, nessa posição, que ela morreu.

As preguiças emitem sons? Essa pelo menos não emitiu (segundo o Tadeu elas emitem um som agudo, um “ pííííííí ”) Era desconcertante vê-la abrindo lentamente sua boca, aparentemente com dor, à medida que seu couro ia sendo cortado. Mais tarde quando o Tadeu lavava a carne, no corpo já sem cabeça, mãos e pés (e depois de ter-lhe tirados as entranhas), o corpo ainda mexia – num reação apenas muscular de um animal sem vida.

Tanto o seu Didico, como Tadeu e mais o Nia, não viam a hora de comer o acecipe; para nós - meu irmão e eu - a visão daquela morte fora o suficiente para não querermos comer daquela carne. Meu irmão tentara comprar o animal ainda vivo para impedí-los de matá-la, mas eles com alguma razão na resposta disseram que o animal estava «chumbado» e que não iria mais sobreviver.

Eu acho que um documentarista não pode interferir no registro de um acontecimento, concorde ou não com ele, senão não há como fazer o registro dessa mesma realidade. No caso da morte da preguiça, ela o foi feito para saciar um desejo alimentar e, não por necessidade de sobrevivência, e mostra o quanto esse ato é uma coisa comum na população ribeirinha, e que o homem continua sendo um depredador nato. Porém não são essas mortes de preguiças (e outros animais da fauna amzônica), para fins alimentares da populaçãoi, as responsáveis pela possível extinção das espécies mas sim a absurda e imparável devastação da floresta amazônica por madeireiros ou para transformar a terra em pasto ou área para plantio de soja.

Mais tarde em conversa com o seu Ari ele contou que ao mandar derrubar árvores de seu terreno para plantar açaí foram encontradas - e mortas - 6 preguiças... E ele mesmo reconhecera (tardiamente) que matá-las era uma desnecessária selvageria...
Parou de chover. Paramos na casa da D. Regina - outra família que dá apoio aos promesseiros em sua viagem -, para cumprimentá-los e, da margem, fazer mais um plano do barco passando.

Entramos no rio Guamá, à direita. Nova parada, no trapiche da casa do seu Alírio. Essa casa fica às margens direita do rio Guamá, a escassos metros depois que se deixa o rio Inhangapi. Seu proprietário falecera em 2002 e a casa agora estava abandonada, o trapiche com visíveis sinais de apodrecimento. Tentamos chegar até a terra firme mas a passagem era impossível. Então dali mesmo, da beira do trapiche, filmamos o “Samaria” entrando no rio Guamá.

Hora do almoço. Nós: feijão com jirimum, arroz, carne guisada e farinha. Eles: idem, substituindo a carne guisada pela carne da preguiça ao leite de castanha do pará.

Na altura de Bujarú alugamos uma rabêta para fazer planos do barco no meio do rio. Essa rabêta tinha ido pegar pessoas na margem oposta à cidade. Eu e Amilcar passamos pra rabêta mas seu dono primeiro foi deixar os passageiros (que transportavam açaí) em Bujarú (uns 10 minutos para a travessia), para depois irmos filmar. Chuviscava e o Amilcar teve que fazer a proteção da câmera com o guarda-chuva. O aluguel da Rabêta custou 10 Reais (USD 5).

Tadeu e Nia iniciaram a operação “limpeza do porão”. Uma balsa com bois passou por nós. Essas balsas são conhecidas como “boieiras”, que a pronúncia cabocla transforma em “buieiras” (Coincidentemente, quando 1 ano depois fiz o filme do transporte de gado, foi que reparei que a balsa que filmei pro “Seu Didico...” foi a mesma balsa em que viajamos para fazer o filme sobre o transporte de gado).

O Samaria navegava à velocidade de 7-9 kms/hora. Assim, havia muito tempo para não fazer nada e aqui e ali um de nós aproveitava pra dar um cochilho. Eram 17:00 horas quando chegamos à ponte do rio Guamá. Saltamos para uma plataforma que fica amarrada a uma das pilastras para fazer o plano do barco passando sob a ponte.

20:00 chegamos a Belém, com uma curta parada para abastecimento. Seguimos viagem e mais tarde paramos num ponto qualquer do rio Moju para dormirmos.


Dia 10, sábado, 25 de março de 2006.

Saímos cedo, como habitual. O dia amanheceu límpido, rendendo bonitos planos da paisagem, de um barco nos ultrapassando e ainda do ambiente do nosso barco, com redes (e pessoas dormindo nelas) ainda armadas no convés. As pamonhas compradas na feira do agricultor em Castanhal ainda renderam para o saboroso café dessa manhã: café preto, pamonha e a deslumbrante paisagem do amanhecer no rio Moju!

O rio Moju é extenso, largo e movimentado. Navegávamos no meio do rio. E todos vimos um pequeno barco que começara a cruzar o rio perpendicularmente, com o seu piloto entretido em tirar água do fundo, com um toldo tapando-lhe a visão e nitidamente em rota de colisão conosco. Seu Didico começou a buzinar e nós a gritarmos, mas o barulho dos motores abafava nossos gritos.

Era tão evidente o choque que deu tempo de pegar a câmera, ligá-la e filmar o abalroamento – que felizmente não teve maiores danos para ambos os barcos e seus tripulantes. Com o choque o homem do pequeno barco foi jogado para a frente, mas rapidamente levantou-se, meteu a cabeça fora do toldo de seu barquinho, pediu desculpas e seguiu seu caminho.

Como sempre, o acontecimento serviu para que o seu Didico tivesse mais um assunto para entreter a seus inúmeros ouvintes que sempre o cercavam pra ouvir suas histórias, recheadas de piadas e palavrões. Cerca das 10:00 horas passamos pela cidade de Moju que, em seus arredores, é repleta de serrarias.

Hora da merenda: pirarucu (salgado). O quilo desse peixe está a 15.00 Reais (USD 7,5). Às 11:45 entramos no Canal dos Escravos (com 1 km de comprimento aprox.), que liga o Rio Moju ao Rio Igarapé Miri.

Na cidade de Igarapé Miri, parada estratégica: abastecer de óleo diesel, açaí, gelo e ida ao sanitário. Utilizamos o do trapiche municipal, bastante limpo, apesar de ser um banheiro público. Aproveitei para tirar algumas fotos da cidade e filmar o barco passando por Igarapé Miri. Saímos às 13:40. Almoço: Pirarucu, feijão, arroz, farinha e açaí.

Às 16:00 chegamos no rio Caji (sujo, ali em seu encontro com o Meruú. Aliás pareceu-me mais sujo do que na viagem anterior). Hora do lanche: Açaí!

Entregamos fotos na casa de uma família aonde havíamos parado na viagem anterior e ali entrevistei o dono da casa (um sr. que é evangelista), aproveitando pra fazer planos do barco passando no rio – desta vez com chuva caindo.

Anoitecia sem pressa, ao ritmo amazônico. Aqui e ali passávamos por uma casa, identificada pela luz elétrica de gerador, ou de lamparinas. A chuva continuava fininha. Seu Didico pôs o Tadeu pra pilotar e foi sentar-se na proa do barco (ficando ali quase 2 horas!), com guarda chuva, para ficar iluminando as margens para orientar o piloto.

Demos uma rápida parada na casa do sr. Ari para combinar ações de carregar madeira no dia seguinte, ou na segunda feira. Ali em sua casa – que possuía gerador e onde havia uma pequena multidão de vizinhos vendo novela - aproveitamos para deixar as fotos feitas na viagem anterior. Uma menina - que ganhou algumas fotos - prometeu dar-nos açaí no dia seguinte.

Eram cerca das 22:30 quando chegamos ao nosso destino: a serraria do seu Zé Melquides. A dormida, sob o friozinho do tempo chuvoso, foi uma delícia.


Dia 11, domingo, 26 de março de 2006.

Na parte matinal fiz entrevistas com o Tadeu e o Nia. Filmei ainda o seu Didico cantando uma música, utilizando um pedaço de madeira para imitar o violão. Depois refiz a chegada do barco, e ainda o seu Didico medindo a madeira, e contando uma de suas intermináveis estórias para uma atenta platéia.

Filmei uma demonstração de como o búfalo puxa as toras de madeira e ao sr. Zé Melquides explicando como isso é feito: entre o local de derrube da madeira e a serraria (ou a beira do rio), numa distância de vários quilometros, é aberta uma picada e ao longo dela são colocados pedaços de madeira roliços, untados com óleo queimado, que servirão de apoio e meio deslizante pra uma plataforma sobre a qual são colocados as toros de madeira. O búfalo puxa essa plataforma. A viagem é repetida várias vezes ao dia. Infelizmente não havia nenhuma puxada de madeira, feita dessa maneira, prevista praqueles dias (como a sequencia que filmei do búfalo puxando um tronco de madeira não correspondia à forma real de como eles fazem esse trabalho, essa sequencia não entrou no filme.)


Então aconteceu o quase acidente com o meu irmão que, ao vir da casa para o barco, foi perseguido pelo búfalo (que minutos antes filmáramos a puxar o tronco). Ao tentar fugir ele escorregou no chão molhado e caiu. O Búfalo (provavelmente por ter pisado na corda presa ao seu pescoço e que o seu tratador esquecera de amarrar) parou a uma curta distância de chifrar o meu irmão, um metro ou menos, segundo o Amilcar.
As pessoas locais riram e comentaram que o búfalo era manso e que não iria fazer mal nenhum. Versão contestada pela esposa do seu Zé Melquides que se dizia prisioneira na casa quando o búfalo pastava solto nas redondezas.

Eu estava no barco quando se deu o incidente e só ouvi o grito do meu irmão quando caíra. Felizmente o episódio não teve maiores consequências, tirante o susto que o Amilcar levou. Serviu também para se brincar com um antigo mote que existe em Castanhal e que surgiu não se sabe como. O mote é: “ vou botar em ti como a vaca botou no Mestre Alfredo”, pressupondo que esse “seu alfredo” um dia fora perseguido por uma vaca. Atualizando o mote, ficaria: “o búfalo botou no Amilcar como a vaca botou no mestre Alfredo”.

Às 11:20 retornamos para a casa do sr. Ari. A madeira de sua serraria só poderia ser carregada no dia seguinte, segunda feira. Ali entrevistei-o, embalando-se numa rede na sala de sua casa. E a surpresa da revelação: o preço do açaí está tão bem cotado que virou o grande negócio da zona. Só no ano passado o sr. Ari faturou cerca de R$ 100.000,00 (ou USD 50.000) com a venda do açaí, com o comprador indo buscar o produto na porta de sua casa. Tirando 20.000 (USD 10.000) das despesas, teve um lucro de R$ 80.000 (USD 40.000), “sem sair da rede, só me embalando”, como frizou o sr. Ari, arrematando que ele está aumentando o seu plantio do produto e de que ali na zona todo mundo planta o açaí. E que já não se consegue comprar um terreno por aquela zona tão facilmente, ou tão barato, como o era há alguns anos. Entrevistei também uma de suas filhas, a Adriana Castro Corrêa (que antes de ser entrevistada pediu pra ir tomar banho e vestir uma roupa nova, além de maquilar-se).

Seu Ari referiu-se ainda ao transporte de toras pelo igarapés, o outro modo de traze-las da mata para as serrarias. Fiquei interessado no assunto e pra nossa sorte no dia seguinte haveria um transporte de toras feito dessa maneira, justamente para o seu Ari. Então combinamos de irmos filmar (e fotografar) esse inusitado meio de transportar a madeira.

Aproveitamos o fato de o seu Ari ter uma antena para celular e ligamos para a Ruth (esposa do Amilcar) pra combinar que viesse nos pegar de carro na terça feira, em Igarapé-Miri, encurtando a nossa viagem de retorno em cerca de um dia.

Hora do almoço, no convés do Samaria. Enquanto almoçávamos encostou em nosso barco um casco com 2 meninas, uma com cerca de 11 anos (Amanda Pinheiro do Nascimento, que recebera uma foto na noite anterior), e outra bem “zitita”, com cerca de 4-5 anos, sua irmã, que queria ser fotografada. Fiz as fotos e cobrei o açaí à Amanda. Ela foi buscar e logo estava de volta com a saborosa bebida. Inteligente e esperta, grudou na gente e ficou nos acompanhando pra todo lado nesse dia, numa espécie de assistente, dizendo quem era quem e fazia o quê ali na comunidade.

À tarde iria rolar na vila de Igarapezinho um jogo de futebol entre as duas equipes locais: S. Raimundo X S. Nonato. O acontecimento reuniu a população e até pessoas vindo de Belém para jogar. Fomos filmar o jogo e tomar cerveja com tira-gosto de camarão seco num dos bares da vila. No joga-conversa-fora da biritagem aprendemos que o açaí é “tuíra” quando está bom para ser colhido.


À noite a movimentação na sala da casa do sr. Ari não parou, por conta dos vizinhos vendo tv. Rolava o festival de bobagens globais, capitaneados pelo insuportável e repetitivo “Faustão”, mas assistido com sofreguidão pela atenta platéia. Fomos convidados para jantar com o sr. Ari (e outros convidados), mas só eu aceitei. Cardápio: Peixe frito, farinha e uma tigela enorme de açaí. Essa quantidade descomunal servida pelo menos 2 x por dia explica as enormes barrigas ostentadas pelo nosso anfitrião e parte da população ribeirinha. Ainda filmei o seu Didico em conversa com seus 2 ajudantes, enquanto jantavam, para em seguida dormirmos o sono dos justos, e cansados.


Dia 12, segunda, 27 de março de 2006.

Mais uma vez a noite foi chuvosa e muito agradável. Às 06:55 saímos da casa do seu Ari, com ele a bordo, para a sua serraria, rio acima. Portanto estávamos voltando para um local que já passáramos no dia anterior. Meia hora depois chegamos na serraria e foi iniciado o carregamento (antecedido pelo corte das pontas da madeira para as deixar em seu comprimento certo e para facilitar sua arrumação nos porões dos barcos).

Na casa ao lado da serraria entregamos as fotos 3X4 do jovem que bateramos na viagem anterior. E usamos o banheiro “5 estrelas” para o alívio fisiológico diário. Enquanto a madeira era carregada fui caminhando com o seu Ari até a casa de um vizinho próximo (2-3 kms) para pedir que ele nos levasse em sua rabêta até à vila de Filipequara, às margens do igarapé do mesmo nome, de onde teríamos que conseguir (com um amigo do seu Ari) uma canoa para irmos de encontro aos homens que iriam trazer as toras igarapé abaixo (a partir dessa vila era impossível subir o curso d´água de rabêta). Só que esse vizinho tinha ido pra roça e foi preciso mandar alguém ir chamá-lo, numa espera de quase 1 hora. Ele concordou em nos levar – forneceríamos o óleo para o motor – mas avisou que sua rabêta tinha alguns problemas de manobra por ter um leme pequeno, o que iria dificultar o percurso no igarapé Felipequara, até à vila.

Merendamos e partimos: eu, Amilcar e o Manoel Reginaldo ( “Ruchico” ), o dono da rabêta, a quem paguei 20 Reais (USD 10), além do óleo para o motor. Quando entramos no igarapé Felipequara (estreito e cheio de curvas, mas de águas limpíssimas) tivemos a real dimensão do problema do leme, que impedia de se fazer as curvas do igarapé sem que a rabêta fosse direto pra margem oposta. Era preciso ajudar a fazer a curva com um remo. Inicialmente o Amilcar tentou fazê-lo, mas não era uma tarefa simples. Então o próprio Reginaldo passou a fazer essa manobra enquanto o Amilcar foi para a popa e lá, manipulando os cabos que controlovam o leme, forçava a que esse funcionasse melhor.

Depois de muitas entradas nos capins das margens chegamos à vila de Felipequara. Ali o igarapé alargava-se, com sua água cristalina, permitindo ótimos banhos. Fomos conhecer a vila enquanto o Reginaldo foi falar com o dono da canoa em que deveríamos viajar, um senhor de nome Agostinho Carvalho.

A vila pouco diferia das outras: uma igrejinha, 2 fileiras de casas, uma de cada lado da rua. Os moradores, curiosos, olhavam-nos, provavelmente imaginando o que aqueles dois “estrangeiros” que filmavam e fotografavam sua vila estavam fazendo ali. Tres homens que construíam uma casa - sentando tijolos e fazendo rebôco -, um deles já bastante idoso, entabularam conversa conosco, e explicamos o motivo de nossa viagem.

Demorou mais 1 hora até que o sr. Agostinho nos disponibilizasse uma canoa. Porém não era uma canoa apropriada, devido ao seu pequeno tamanho. A solução foi trocá-la por uma maior, que pertencia a um dos pedreiros. Contratamos mais um remador (Júlio Nunes Filho) e finalmente partimos ao encontro das toras.

Subimos o igarapé durante 1 hora e meia e era impressionante ver o quanto suas águas eram limpíssimas, e o quanto a mata, em muitos pontos, era cerrada, com o igarapé espraiando-se em várias direções de tal modo que muitas vezes perdíamos a noção de onde estávamos (onde a inevitável pergunta: como aqueles homens conseguiam transportar a madeira por aquele caminho que, muitas vezes, parecia não ter espaço suficiente para as toras passarem?).

Foi numa dessas situações inusitadas que, em dúvida sobre se estávamos ou não perdidos, o nosso guia deu um grito de “oiê!”, e logo ouvimos, vindo de outra direção, das profundezas da floresta, outro grito como resposta – o que nos permitiu corrigir o rumo da viagem e encontrarmos, no ponto aonde o igarapé passava a ter o nome de “Breu”, os homens que traziam as toras de madeira.

Foi uma visão impressionante: várias canoas com diversas toras amarradas de ambos os lado, com um ou dois homens em pé sobre as toras utilizando varas para movimentá-las e controlá-las, desciam o curso de água ao lento sabor da correnteza e em meio a uma permanente troca de palavrões que funcionava como uma brincadeira entre eles e quebra da monotonia.

Esse transporte de toras funciona da seguinte maneira: as árvores derrubadas são serradas em toras e transportadas por búfalos para a beira do igarapé que, por ser temporário (era difícil acreditar que aquele caudal fabuloso, profundo e limpo, logo estaria reduzido a um pequeno curso de água, inavegável), só permite a navegabilidade em duas ou tres semanas do ano, na época da chuva mais intensa, justamente o período em que estávamos.

Então os homens saem cedo (4-5 da manhã) em suas enormes canoas feitas de uma peça única de tronco de árvore - igarapé acima -, até chegar ao local aonde estão as toras de madeira. Ali elas são amarradas em volta da canoa, de modo que cada uma possa transportar de 8 a 12 toras. Naquela viagem eram 6 canoas, que transportavam no mínimo 36 toras.

Esse modo de transportar as toras é realmente espetacular. Primeiro, pelo inusitado do meio de transporte. Segundo, pela maestria com que cada um dos homens conduz sua canoa numa frenética atividade caminhando sobre as toras firmemente amarradas, com uma comprida vara na mão que serve ao mesmo tempo de força impulsionadora e de objeto para desviar a canoa de troncos, cipós, galhos ou qualquer outro obstáculo que impeça a navegabilidade da mesma – atividade que não os deixa descansar um minuto sequer. E, terceiro, pelo deslumbramento que a paisagem oferece.

Depois de filmá-las a partir da nossa canoa passei para uma das canoas-jangada e, dela, para as outras, para poder ter outros ângulos de filmagem. Algumas canoas são pilotadas por apenas um homem, a maioria dos casos; outras, por dois. No início as canoas-jangada vêm juntas, quase que coladas umas às outras. Mas aos poucos, e dependendo do ritmo e da perícia de cada condutor (ou condutores), elas vão distanciando-se entre si.

Os homens não param de falar e estão sempre brincando entre eles. A brincadeira preferida é gozar com a masculinidade do colega, ou de que vai transar com a mulher do outro, sempre por metáforas do tipo: “fulano, avisa à tua mulher que não vou dormir com ela hoje porque a viagem está atrasada”. Também são frequentes a perda do equilíbrio, com quedas na água. Vez ou outra a canoa (ou a tora nela amarrada) encalha num tronco submerso e aí é preciso mergulhar pra poder soltar a canoa. As varas para empurrar as canoas são retiradas da floresta e são substituídas ao longo da viagem quando suas pontas desgastam no atrito com outras árvores.

Eles fazem uma viagem por dia, durante vários dias, até trazer todas as toras, antes que as águas baixem. Nessa primeira etapa as toras ficam amontoadas num ponto qualquer do igarapé na vila de Felipequara. Depois são levadas até ao rio Caji, repetindo o processo de amarrar as toras ao lado da canoas, etc. No rio, as toras são enfileiradas e amarradas umas às outras, formando uma extensa jangada, e rebocadas por um barco a motor até a serraria.

Acompanhamos o “comboio” por cerca de 2 horas e regressamos à vila de Felipequara. No único bar locals tomamos cerveja gelada, pagamos uma garrafa de cachaça para ser entregue aos transportadores das toras, e fomos tomar um refrescante banho de igarapé.

A viagem de volta foi com os mesmos problemas da vinda, com o Amilcar tendo que ajudar no leme, etc. No rio Caji encontramos o “Samaria” já carregado e pronto para partir. Aproveitei pra filmar ainda uns planos a partir da rabêta e esses foram os últimos planos filmados porque ali terminou a última fita e, por extensão, as filmagens. Eram 16:30 horas. Deixamos o seu Ari em sua casa mas por causa da maré não pudemos iniciar a viagem de volta. Ancoramos o barco e pernoitamos em mais uma noite de dormida tranquila.

Dia 13, terça, 28 de março de 2006.

Saímos de madrugada. O café da manhã foi no convés sob um sol que aquecia a manhã luminosa. Tadeu preparou ovos estrelados comidos com bolachas. Ainda deu para fazermos várias fotos antes de chegarmos a Igarapé Miri, por volta das 9:30, aonde eu e o Amilcar iríamos saltar. Seu Didico abasteceu o barco, nos despedimos e eles seguiram viagem. A Saga do Samaria estava registrada, assim como a história do seu Didico, velho macho paraense.


Chico Carneiro, Maputo, 1 de Junho de 2006

Problemas encontrados para fazer este filme - e como foram resolvidos.

Recarregamento das Baterias

O ideal é ter sempre baterias suficientes para a duração da viagem. E mesmo assim prever como será feito o seu carregamento. Eu tinha 4 baterias que me permitiam cerca de 20 horas de filmagem (esse tempo varia em função de quanto tempo a câmera fica ligada, mesmo em modo de espera, e, sobretudo, da maior ou menor utilização da janela lateral com o visor de cristal líquido). Evitei ao máximo de utilizar o visor de cristal líquido (apenas checava a luz e o balanço do branco, ou então só o utilizava quando era impossível filmar utilizando o visor tradicional) como uma das formas de economizar as baterias.

Na primeira viagem gastei mais baterias porque filmei muito. Na segunda, mais objetivo, o consumo foi menor. Mas mesmo assim recarreguei baterias ao longo da viagem, aproveitando qualquer oportunidade existente. Mesmo pouca carga é melhor do que nenhuma.

Dica: levar sempre algum combustível de reserva para negociar com os ribeirinhos que possuam gerador a sua utilização para carregar as baterias.

Som:

Aqui a ousadia foi total. Usei apenas um microfone lapela e o micro direcional da câmera. Um bom fone de ouvido para monitorar o som (invariavelmente será um fone de ouvido caro) também é fundamental, embora muitas vezes o tempo que se leva para colocar o fone no ouvido, plugá-lo, e mais a possível atrapalhação que o cabo de ligação entre o fone e a câmera possa causar em certos casos, diminua a agilidade pra captar os momentos. Então aqui também conta a experiência com captação de som.

Outra “técnica” utilizada: como o meu espaço físico era principalmente o barco com o seu permanente som de “po po pô” do motor, foi fácil estabelecer visualmente no monitor do nível do som na câmera, qual o nível ideal para os diferentes pontos do barco de onde eu filmava. Se eu filmava da proa para o interior do barco, o nível de som era um; se filmava da proa para fora, outro. Se filmava no interior da cabine, outro, etc. Isso permitiu um ajuste bastante preciso do nível do som nos momentos em que, por qualquer motivo, tinha que filmar sem a utilização do fone de ouvido.

Chuva:

O bom e velho guarda-chuva de material impermeável quebrou altos galhos. Não me preparei adequadamente para a opção chuva, o que limitou os planos na sequência da captura da preguiça já que a chuva forte e o curto ângulo de virada do guarda-chuva limitavam o meu movimento.
É preciso ter 2 guarda-chuvas, um normal e um daqueles de praia. E têm que ser – sempre - impermeáveis. A utilização de caixas plásticas especiais contra água são obviamente mais seguras, mas inadequadas para o tipo de filme que estava fazendo.

Importante é ter uma mala de proteção da câmera de material plástico duro e impermeável, de modo que a câmera possa ser guardada (e retirada) rapidamente. O ideal é que a mala tenha tamanho suficiente pra que a câmera fique guardada montada, pronta pra filmar. E tenha ainda espaço para guardar as baterias, fitas e demais acessórios.

Na primeira viagem eu guardava o material de filmagem dentro da cabine. Mas isso não era prático (embora fosse seguro). Na segunda passei a ter a mala da câmera no convés, sobre a cabine de pilotagem, sob um toldo, de modo que ela não molhava em caso de chuva e eu tinha acesso rapidamente à ela.

Também foi muito pratico e seguro ter uma caixa plástica transparente, com tampa (comprada em qualquer supermercado) com os demais acessórios da câmera (que não eram usados frequentemente) e, sobretudo, para guardar as fitas já filmadas.


ADENDOS

Em março de 2007 fui novamente ao Brasil para filmar o segundo filme da série, o sobre o transporte de gado. Nessa ida aproveitei pra gravar as músicas pro filme, que foram compostas e executadas por Cincinato Jr. e Allan Carvalho, e ainda pelo Luiz Pardal, com direção musical deste último.

ESTRÉIA e outras exibições

Estréia mundial no festival Dockanema, em Maputo. 16/09/2007
Estréia brasileira: Casa de Cultura de Castanhal. 26/09/2008.
Exibido no Cine Estação, em Belém, nas Docas. 29/09/2008
Exibido no hotel fazenda, em Castanhal. 08/10/2008
Exibido no Instituto Ampliar, Mosqueiro, Pará (2 sessões). 09/10/2008
Exibido na cidade de Inhangapi, Pará, em sessão ao ar livre. 10/10/2008
Participou da 6ª edição do FestCine Amazônia – Festival de Cinema e Vídeo Ambiental, de Rondônia. Novembro de 2008
Exibido na Mostra Amazônia, programação oficial do Forum Social Mundial. 29/01/2009
Exibido no Cine Olímpia, Belém. Programação paralela do Forum Social Mundial. 31/01/2009